quinta-feira, 4 de abril de 2019

Sonetos a Orfeu * Rainer Maria Rilke * RDA

Sonetos a Orfeu
Rainer Maria Rilke

I

Elevou-se então uma árvore. Ó, puro elevamento!
Ó, Orfeu canta! Ó, alta árvore no ouvido!

E tudo se calou. Porém, no próprio silenciamento
 era novo começo, aceno e mudança que acontecia.

Animais de silêncio avançavam da floresta clara e aberta deixando covil e ninho;

e mostrou-se então que não era por astúcia nem por medo que em si estavam tão calados,

mas por ouvirem. Rugido, grito, bramido parecia pequeno em seus corações. E lá onde mal havia uma cabana para isso acolher,

um abrigo feito do mais obscuro anseio,

com uma entrada cujas ombreiras tremem, — aí lhes criaste templo na escuta.

II

E quase menina era e assim ia,

movida desta una felicidade de canto e lira,

e reluzia, clara, através do seu véu de primavera e fez para si um leito no meu ouvido.

E dormiu em mim. E tudo era o seu sono. As árvores que sempre admirei, esta distância tangível, o prado sentido

e cada espanto que a mim mesmo atingia.

Dormiu ela o mundo. Tu, deus cantante, como foi que a fizeste tão perfeita que não desejou somente acordar? Vê, ela nasceu e dormiu.

Onde está a sua morte? Ó, será que ainda inventarás este motivo, antes que teu cantar se consuma? — Para onde vai, de mim caindo?... Menina quase....

III

Um deus consegue-o. Porém, diz-me, como há-de um homem segui-lo através da estreita lira?

O sentido seu é discrepância. No cruzamento de dois caminhos do coração não há um templo de Apolo.

O canto, como tu o ensinas, não é desejo, não é anúncio de algo finalmente a alcançar; canto é existência. Fácil, para o deus.

Porém, somos quando? E quando fará ele girar

em torno do nosso ser a Terra e as estrelas?

Tal não é, jovem moço, o caso de amares, ainda que a voz te force a boca, — aprende

a esquecer que cantaste. Isso escoa-se. Em verdade cantar é um outro sopro.

Um sopro por nada. Um adejar no deus. Um vento.

IV

Ó vós, os ternos, entrai por vezes na respiração que não se vos dirige,

deixai-a sobre as vossas faces dividir-se, atrás de vós estremece, de novo unida.

Ó vós, os ditosos, ó vós, os incólumes que pareceis o começo dos corações. Arcos das flechas e alvos de flechas,

mais eterno reluz o vosso sorrir de lágrimas.

Não temais sofrer, a carga, devolvei-a ao peso da terra;

pesadas são as montanhas, pesados são os mares.

Mesmo as que plantastes quando crianças, as árvores, fizeram-se pesadas demais, há muito; não as sustínheis. Mas os ares... mas os espaços....

V

Não erijais lápide alguma. Deixai a rosa apenas cada ano em favor dele florir.

Pois que é Orfeu. A metamorfose dele nisto e naquilo. Não havemos de buscar

outros nomes. De uma vez por todas

é Orfeu, quando algo canta. Vem e vai. Não será muito, já, se à taça das rosas um par de dias às vezes sobrevive?

Ó, quanto tem que retrair-se para que tal compreendais! E mesmo que ele próprio se inquietasse por se retrair.

Superando a palavra sua o que aqui é

está ele já ali, onde isso não acompanhais. A grade da lira não lhe força as mãos.

E ele obedece, em tanto que excede.
XXX