Sonetos a Orfeu
Rainer Maria Rilke
I
Elevou-se então uma árvore. Ó, puro elevamento!
Ó, Orfeu canta! Ó, alta árvore no ouvido!
E tudo se calou. Porém, no próprio silenciamento
E tudo se calou. Porém, no próprio silenciamento
era novo começo, aceno e mudança que acontecia.
Animais de silêncio avançavam da floresta clara e aberta deixando covil e ninho;
e mostrou-se então que não era por astúcia nem por medo que em si estavam tão calados,
mas por ouvirem. Rugido, grito, bramido parecia pequeno em seus corações. E lá onde mal havia uma cabana para isso acolher,
um abrigo feito do mais obscuro anseio,
com uma entrada cujas ombreiras tremem, — aí lhes criaste templo na escuta.
II
E quase menina era e assim ia,
movida desta una felicidade de canto e lira,
e reluzia, clara, através do seu véu de primavera e fez para si um leito no meu ouvido.
E dormiu em mim. E tudo era o seu sono. As árvores que sempre admirei, esta distância tangível, o prado sentido
e cada espanto que a mim mesmo atingia.
Dormiu ela o mundo. Tu, deus cantante, como foi que a fizeste tão perfeita que não desejou somente acordar? Vê, ela nasceu e dormiu.
Onde está a sua morte? Ó, será que ainda inventarás este motivo, antes que teu cantar se consuma? — Para onde vai, de mim caindo?... Menina quase....
III
Um deus consegue-o. Porém, diz-me, como há-de um homem segui-lo através da estreita lira?
O sentido seu é discrepância. No cruzamento de dois caminhos do coração não há um templo de Apolo.
O canto, como tu o ensinas, não é desejo, não é anúncio de algo finalmente a alcançar; canto é existência. Fácil, para o deus.
Porém, somos quando? E quando fará ele girar
em torno do nosso ser a Terra e as estrelas?
Tal não é, jovem moço, o caso de amares, ainda que a voz te force a boca, — aprende
a esquecer que cantaste. Isso escoa-se. Em verdade cantar é um outro sopro.
Um sopro por nada. Um adejar no deus. Um vento.
IV
Ó vós, os ternos, entrai por vezes na respiração que não se vos dirige,
deixai-a sobre as vossas faces dividir-se, atrás de vós estremece, de novo unida.
Ó vós, os ditosos, ó vós, os incólumes que pareceis o começo dos corações. Arcos das flechas e alvos de flechas,
mais eterno reluz o vosso sorrir de lágrimas.
Não temais sofrer, a carga, devolvei-a ao peso da terra;
pesadas são as montanhas, pesados são os mares.
Mesmo as que plantastes quando crianças, as árvores, fizeram-se pesadas demais, há muito; não as sustínheis. Mas os ares... mas os espaços....
V
Não erijais lápide alguma. Deixai a rosa apenas cada ano em favor dele florir.
Pois que é Orfeu. A metamorfose dele nisto e naquilo. Não havemos de buscar
outros nomes. De uma vez por todas
é Orfeu, quando algo canta. Vem e vai. Não será muito, já, se à taça das rosas um par de dias às vezes sobrevive?
Ó, quanto tem que retrair-se para que tal compreendais! E mesmo que ele próprio se inquietasse por se retrair.
Superando a palavra sua o que aqui é
está ele já ali, onde isso não acompanhais. A grade da lira não lhe força as mãos.
E ele obedece, em tanto que excede.
XXX
Animais de silêncio avançavam da floresta clara e aberta deixando covil e ninho;
e mostrou-se então que não era por astúcia nem por medo que em si estavam tão calados,
mas por ouvirem. Rugido, grito, bramido parecia pequeno em seus corações. E lá onde mal havia uma cabana para isso acolher,
um abrigo feito do mais obscuro anseio,
com uma entrada cujas ombreiras tremem, — aí lhes criaste templo na escuta.
II
E quase menina era e assim ia,
movida desta una felicidade de canto e lira,
e reluzia, clara, através do seu véu de primavera e fez para si um leito no meu ouvido.
E dormiu em mim. E tudo era o seu sono. As árvores que sempre admirei, esta distância tangível, o prado sentido
e cada espanto que a mim mesmo atingia.
Dormiu ela o mundo. Tu, deus cantante, como foi que a fizeste tão perfeita que não desejou somente acordar? Vê, ela nasceu e dormiu.
Onde está a sua morte? Ó, será que ainda inventarás este motivo, antes que teu cantar se consuma? — Para onde vai, de mim caindo?... Menina quase....
III
Um deus consegue-o. Porém, diz-me, como há-de um homem segui-lo através da estreita lira?
O sentido seu é discrepância. No cruzamento de dois caminhos do coração não há um templo de Apolo.
O canto, como tu o ensinas, não é desejo, não é anúncio de algo finalmente a alcançar; canto é existência. Fácil, para o deus.
Porém, somos quando? E quando fará ele girar
em torno do nosso ser a Terra e as estrelas?
Tal não é, jovem moço, o caso de amares, ainda que a voz te force a boca, — aprende
a esquecer que cantaste. Isso escoa-se. Em verdade cantar é um outro sopro.
Um sopro por nada. Um adejar no deus. Um vento.
IV
Ó vós, os ternos, entrai por vezes na respiração que não se vos dirige,
deixai-a sobre as vossas faces dividir-se, atrás de vós estremece, de novo unida.
Ó vós, os ditosos, ó vós, os incólumes que pareceis o começo dos corações. Arcos das flechas e alvos de flechas,
mais eterno reluz o vosso sorrir de lágrimas.
Não temais sofrer, a carga, devolvei-a ao peso da terra;
pesadas são as montanhas, pesados são os mares.
Mesmo as que plantastes quando crianças, as árvores, fizeram-se pesadas demais, há muito; não as sustínheis. Mas os ares... mas os espaços....
V
Não erijais lápide alguma. Deixai a rosa apenas cada ano em favor dele florir.
Pois que é Orfeu. A metamorfose dele nisto e naquilo. Não havemos de buscar
outros nomes. De uma vez por todas
é Orfeu, quando algo canta. Vem e vai. Não será muito, já, se à taça das rosas um par de dias às vezes sobrevive?
Ó, quanto tem que retrair-se para que tal compreendais! E mesmo que ele próprio se inquietasse por se retrair.
Superando a palavra sua o que aqui é
está ele já ali, onde isso não acompanhais. A grade da lira não lhe força as mãos.
E ele obedece, em tanto que excede.
XXX